Não foram poucos os que alçaram “A chegada”, do canadense Denis Villeneuve, à posição de clássico da ficção científica. O filme parece ter a receita para ocupar seu lugar: uma equilibrada mistura entre o incrível e o humano. O paradoxo é que essa mistura desanda justamente em seu surpreendente final, quando o humano torna-se tão grandioso que soterra o incrível.
Partindo de um conto do chinês Ted Chiang -ele também considerado um novo clássico num gênero literário em que reinam nomes como Isaac Asimov, Philip K. Dick e Arthur C. Clarke-, o filme começa com uma sequência que nos lembra o início de um desenho que se tornou um clássico: “Up”. Em alguns minutos, conta o nascimento, a vida e a morte prematura da filha da linguista Louise Banks (Amy Adams).
A tragédia parece justificar o quase catatonismo de Banks num dos momentos mais importantes da história da humanidade: a chegada de 12 naves alienígenas em diversos pontos do mundo. Enquanto todos assistem atônitos à TV, Banks circula alheia pelo campus da universidade na qual leciona. Mas ela não conseguirá ficar à margem desse grandioso acontecimento, pois é convocada pelo governo a aplicar sua expertise na tentativa de comunicação entre humanos e alienígenas.
Interessante é que Banks não é chamada por ser a melhor do mundo em seu ramo, mas sim por já ter credenciais de acesso por causa de trabalhos anteriores com o governo. Apesar de ser um detalhe, isso se torna fundamental á centralidade que a linguista vai tendo em relação ao desenrolar da história, que ocorre muito por causa de uma excepcionalidade que se manifesta justamente nela.
A linguagem, claro, não poderia deixar de ser discutida num filme como esse. No acampamento à beira de uma das naves, há o encontro entre as formas de falar de diversas instituições -a científica, representada por Banks e pelo físico Ian Donelly (Jeremy Renner); a militar, encarnada no coronel Weber (Forest Whitaker); a governamental, falada pelo agente Halpern (Michael Stuhlbarg).
O que está em disputa, no fundo, é qual das linguagens irá dar conta da relação entre os alienígenas e os humanos -a científica, que é pacífica e curiosa, ou a militar e governamental, que são bélicas e desconfiadas. Para complicar, os outros países que receberam as naves também estão com suas equipes tentando contato -e todas essas nações conversam entre si numa grande polifonia-que é, no entanto, superada pela linguagem comum da ciência, pois os cientistas, não importam de onde são, estão falando a mesma língua “universal”. A missão de Banks é, portanto, fazer prevalecer uma linguagem de entendimento -algo que não é exatamente novo no cinema, vide que o mesmo conflito aparece em “Marte ataca!”, de Tim Burton, e em várias outras obras.
Centrado na linguista, o filme precisa de uma atriz capaz de encarnar sua personagem principal. E Amy Adams cumpre o papel com louvor. Sem grandes arroubos, mesmo que passando por uma montanha russa de emoções, a atriz consegue transmitir as emoções com muita sutileza. E Banks cresce e se fortalece no decorrer do filme a tal ponto que eclipsa todos os seus companheiros de tela, tanto enquanto personagem quanto como trabalho artístico de Amy Adams.
Associado ao grande trabalho da atriz está a mão precisa do diretor. Villeneuve constrói cuidadosamente sua história e, antes que percebamos, já compramos todo o aparato de ficção científica. Isso para não falar da direção de arte, que atualiza o design característico das naves espaciais cinematográficas (detalhadas, orgânicas, cheias de detalhes) para um desenho minimalista muito contemporâneo nunca antes visto.
O primeiro ruído na história cuidadosamente contada aparece justamente quando, em off, o físico Donelly explica como Banks conseguiu decifrar a linguagem alienígena. É um recurso preguiçoso e que se mostra desnecessário, pois logo esquecemos os detalhes da explicação para nos focarmos na questão principal de seu funcionamento -fundamental para entendermos a história.
A grande revelação final tem conexão direta com a maneira como se comunicam os alienígenas. Os últimos minutos do filme são tão envolventes, tão humanos e tão emocionantes que acabam, por mais estranho que pareça, eclipsando quase tudo o que vimos.
O que se leva ao sair do filme nem são tanto as discussões em torno dos embates de linguagem e da necessidade de a humanidade se unir por um objetivo comum -temas esses em nada inéditos-, mas sim a escolha decisiva de Banks. E isso faz com que tudo o que vimos antes funcione mais como um gigantesco prólogo para um dilema que não tem nada a ver com a, digamos, grande história do filme. É algo que concerne apenas à linguista.
Ressalta-se a individualidade em sobreposição a uma grande questão tão básica capaz de envolver toda a humanidade tanto por sua generalidade quanto pela profundidade. E talvez por isso “A chegada” venha a ser colocado em seu devido lugar com o tempo: um ótimo filme de ficção científica, mas não um clássico.