A CHEGADA, DE DENIS VILLENEUVE

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Não foram poucos os que alçaram “A chegada”, do canadense Denis Villeneuve, à posição de clássico da ficção científica. O filme parece ter a receita para ocupar seu lugar: uma equilibrada mistura entre o incrível e o humano. O paradoxo é que essa mistura desanda justamente em seu surpreendente final, quando o humano torna-se tão grandioso que soterra o incrível.

Partindo de um conto do chinês Ted Chiang -ele também considerado um novo clássico num gênero literário em que reinam nomes como Isaac Asimov, Philip K. Dick e Arthur C. Clarke-, o filme começa com uma sequência que nos lembra  o início de um desenho que se tornou um clássico: “Up”. Em alguns minutos, conta o nascimento, a vida e a morte prematura da filha da linguista Louise Banks (Amy Adams).

A tragédia parece justificar o quase catatonismo de Banks num dos momentos mais importantes da história da humanidade: a chegada de 12 naves alienígenas em diversos pontos do mundo. Enquanto todos assistem atônitos à TV, Banks circula alheia pelo campus da universidade na qual leciona. Mas ela não conseguirá ficar à margem desse grandioso acontecimento, pois é convocada pelo governo a aplicar sua expertise na tentativa de comunicação entre humanos e alienígenas.

Interessante é que Banks não é chamada por ser a melhor do mundo em seu ramo, mas sim por já ter credenciais de acesso por causa de trabalhos anteriores com o governo. Apesar de ser um detalhe, isso se torna fundamental á centralidade que a linguista vai tendo em relação ao desenrolar da história, que ocorre muito por causa de uma excepcionalidade que se manifesta justamente nela.

A linguagem, claro, não poderia deixar de ser discutida num filme como esse. No acampamento à beira de uma das naves, há o encontro entre as formas de falar de diversas instituições -a científica, representada por Banks e pelo físico Ian Donelly (Jeremy Renner); a militar, encarnada no coronel Weber (Forest Whitaker); a governamental, falada pelo agente Halpern (Michael Stuhlbarg).

O que está em disputa, no fundo, é qual das linguagens irá dar conta da relação entre os alienígenas e os humanos -a científica, que é pacífica e curiosa, ou a militar e governamental, que são bélicas e desconfiadas. Para complicar, os outros países que receberam as naves também estão com suas equipes tentando contato -e todas essas nações conversam entre si numa grande polifonia-que é, no entanto, superada pela linguagem comum da ciência, pois os cientistas, não importam de onde são, estão falando a mesma língua “universal”. A missão de Banks é, portanto, fazer prevalecer uma linguagem de entendimento -algo que não é exatamente novo no cinema, vide que o mesmo conflito aparece em “Marte ataca!”, de Tim Burton, e em várias outras obras.

Centrado na linguista, o filme precisa de uma atriz capaz de encarnar sua personagem principal. E Amy Adams cumpre o papel com louvor. Sem grandes arroubos, mesmo que passando por uma montanha russa de emoções, a atriz consegue transmitir as emoções com muita sutileza. E Banks cresce e se fortalece no decorrer do filme a tal ponto que eclipsa todos os seus companheiros de tela, tanto enquanto personagem quanto como trabalho artístico de Amy Adams.

Associado ao grande trabalho da atriz está a mão precisa do diretor. Villeneuve constrói cuidadosamente sua história e, antes que percebamos, já compramos todo o aparato de ficção científica. Isso para não falar da direção de arte, que atualiza o design característico das naves espaciais cinematográficas (detalhadas, orgânicas, cheias de detalhes) para um desenho minimalista muito contemporâneo nunca antes visto.

O primeiro ruído na história cuidadosamente contada aparece justamente quando, em off, o físico Donelly explica como Banks conseguiu decifrar a linguagem alienígena. É um recurso preguiçoso e que se mostra desnecessário, pois logo esquecemos os detalhes da explicação para nos focarmos na questão principal de seu funcionamento -fundamental para entendermos a história.

A grande revelação final tem conexão direta com a maneira como se comunicam os alienígenas. Os últimos minutos do filme são tão envolventes, tão humanos e tão emocionantes que acabam, por mais estranho que pareça, eclipsando quase tudo o que vimos.

O que se leva ao sair do filme nem são tanto as discussões em torno dos embates de linguagem e da necessidade de a humanidade se unir por um objetivo comum -temas esses em nada inéditos-, mas sim a escolha decisiva de Banks. E isso faz com que tudo o que vimos antes funcione mais como um gigantesco prólogo para um dilema que não tem nada a ver com a, digamos, grande história do filme. É algo que concerne apenas à linguista.

Ressalta-se a individualidade em sobreposição a uma grande questão tão básica capaz de envolver toda a humanidade tanto por sua generalidade quanto pela profundidade. E talvez por isso “A chegada” venha a ser colocado em seu devido lugar com o tempo: um ótimo filme de ficção científica, mas não um clássico.

 

O QUARTO DE JACK, DE LENNY ABRAHAMSON

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Ao tratar da história de uma mulher que fica anos em cativeiro, sendo constantemente estuprada por seu sequestrador, de quem engravida e cujo filho cria durante seus primeiros cinco anos sem que a criança saiba que existe um mundo fora do quarto no qual estão trancados, “O quarto de Jack”, de Lenny Abrahamson, não satisfaz nenhuma de nossas expectativas. E essa é justamente sua grande qualidade.

O filme começa com Joy (Brie Larson) e seu filho Jack (Jacob Tremblay) começando mais um dia. E logo de cara já temos a primeira surpresa. As inocentes palavras da criança, que comemora cinco anos, pontuando uma situação que nós sabemos terrível, que Joy também sabe terrível, mas que Jack não faz ideia do quão terrível é. A leveza inocente da narrativa da criança -que não é contínua, e sim aparece aqui e ali- contrapõe-se a um esperado tom grave que a história demandaria.

E não apenas pela criança falar, mas também pelo que ela fala. O filme é baseado no premiado livro de  mesmo nome escrito por Emma Donnoghue, também autora do roteiro. Ela consegue imprimir todo aquele lirismo inocente que sai da boca daquelas crianças mais sensíveis e irriquietas, como Jack. Há certa filosofia em suas falas, mas nunca a filosofia de um adulto -sempre a de uma criança.

O filme também não nos fornece um tão esperado embate entre vítima e sequestrador. Não há uma fuga violenta, ou uma disputa no tribunal. Segue o ponto de vista da criança, que se tranca no armário quando Old Nick (Sean Bridgers) chega para suas sessões de estupro. Pouco vemos o sequestrador. Na verdade, não vemos nunca nenhum ato violento, apesar de ouvirmos coisas. E é por isso que a violência da situação é tão agoniante -pois ao não vermos, nos permitimos imaginar não só o que acontece naquele momento, mas o que aconteceu nos últimos anos.

Troca-se também o ambiente asfixiante de um quarto sem janelas -apenas com uma claraboia- pela casa da mãe e do padrasto de Joy -que encontra sua família dilacerada, pais separados, com seu pai vivendo longe e não conseguindo lidar com o fato de ter um neto que é filho do sequestrador e estuprador de sua filha. É como se a casa da família fosse o purgatório depois do inferno do cativeiro, o passo que que se tem de tomar antes de se chegar à plena liberdade.

Abrahamson, por sinal, usa com extrema habilidade a questão dos espaços. No quarto, cenas fechadas, claustrofóbicas, câmera irriquieta, ângulos não convencionais. Já na casa, composta por variados pavimentos, várias cenas colocam personagens ao mesmo tempo na tela em níveis diferentes do imóvel, ressaltando assim a maior liberdade que existe ali, mas pontuando que ainda é um espaço fechado, e que Joy e Jack não conseguem com facilidade dar o passo para fora, para o mundo.

No fundo, o filme é, isso sim, sobre a superação do trauma por parte da mãe, e do conhecimento do mundo por parte do filho. Se Joy sabia que existia uma vida lá fora, Jack simplesmente achava que a vida era o que se vivia dentro do quarto. Contar a história dessa superação poderia se tornar um grande fracasso não fossem as atuações ótimas.

Brie Larson é forte concorrente ao Oscar com sua encarnação algo resignada, que se permite pouquíssimos momentos de desespero durante o cativeiro, e que tem de lidar depois com a retomada de uma vida que não esperou por ela, pois todos seguiram seus rumos. Mas impressionante mesmo é Jacob Trambley, o coração do filme. Em nenhum momento o garoto de nove anos entrega nada menos do que a verdade, até porque para Jack tudo, absolutamente tudo é novo. Seu olhar quando vê o céu pela primeira vez na caçamba da picape durante a fuga é um momento que beira o sublime.

“O quarto de Jack”, portanto, marca por tudo aquilo que não esperávamos do filme -a delicadeza, a pureza infantil, o ritmo calmo. Obra de um diretor com total domínio do que está fazendo dirigindo atores com total entrega à história.

 

 

 

 

 

 

O REGRESSO, DE ALEJANDRO GONZÁLEZ IÑÁRRITU

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Poucas coisas são tão empolgantes quanto um épico bem realizado. Consequentemente, poucas coisas são tão enfadonhas quanto um épico fracassado. Sempre construídos com altas doses de pretensão, o bem realizado é um casamento perfeito entre forma e tema. O fracassado quase sempre é um triunfo formal sem matéria a preenchê-lo. “O regresso”, do mexicano Alejandro González Iñárritu é, infelizmente, um épico do último tipo.

O filme baseia-se em uma história incrível e real. Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) faz parte de um grupo de vendedores de pele. Encurralados por uma tribo indígena que procura a filha sequestrada do chefe, acabam fugindo e deixando para trás sua valiosíssima carga. Em dado momento, Glass é atacado por um urso, que quase o mata. Como se não bastasse o perigo da perseguição dos indígenas, o grupo ainda tem de lidar com o quase falecido. Ele, então, é deixado aos cuidados de seu filho meio indígena Hawk (Forrest Googluck), do jovem Bridger (Will Pouter) e do ambicioso e rústico John Fiztgerald (Tom Hardy). Esse último decide matar Hawk, deixar Glass para morrer e buscar a recompensa oferecida pelo chefe do grupo, o capitão Andrew Henry (Domhall Gleeson) aos que se candidataram para cuidar de Glass -que consegue milagrosamente sobreviver.

O ataque quase mortal, por sinal, oferece uma espécie de paralelo com o resto do filme. O urso ataca Glass quando esse estava apontando suas armas para seus filhotes. Ao ter as crias ameaçadas, o urso -a natureza, ou a Natureza- reage para matar. Assim também é Glass, que tira suas forças da dor de ter tido seu filho assassinado por Fitzgerald. Ou não?

O grande problema do filme é esse: não conseguir fixar um tema. É sobre vingança? Um pouco. É sobre sobrevivência? Também. É sobre a vida em um Estados Unidos violentamente em formação? Sim. É sobre o massacre contra os indígenas em nome de um pretenso processo civilizatório? Em parte. É sobre a força descomunal da natureza? Em parte. Mas “O regresso”, no fim, não aborda com profundidade nenhuma dessas questões. Fica num limbo indefinido. Sabe apenas que quer ser um épico, mas sem saber um épico sobre o quê.

Se não define seu tema, “O regresso” é um espetáculo visual. A fotografia do também mexicano Emmanuel Lubezki é de cair o queixo. A maneira como ele contrapõe closes fechados dos personagens com imagens abertas da paisagem dão bem a dimensão do espaço natural em que a história se desenvolve. Mais ainda, ao posicionar muitas vezes a câmera numa altura abaixo da cintura dos personagens, Lubezki consegue ressaltar de uma só vez tanto a grandeza épica das figuras humanas quanto a grandeza quase opressiva da natureza.

Paradoxalmente, a beleza das imagens acaba perdendo o efeito justamente por ser tão utilizada. O primeiro grande plano da natureza enche os olhos. No centésimo primeiro já estamos anestesiados, parece apenas que assistimos a um comercial da National Geographic entre os momentos de ação do filme. É a falha em conectar natureza e história. Lubezki faz seu papel -é Iñárritu quem falha. Fica a impressão que parte do tempo gasto em impressionar nossos olhos poderia ter sido mais bem utilizado impressionando nossa mente.

Basta ver a rapidez com que o filme se resolve em seus trinta minutos finais, depois de assistirmos a um verdadeiro purgatório de Glass, praticamente um morto-vivo de tanto sofrimento -o que inclui até cair de um penhasco em cima de uma árvore. O que nos traz a questão que todos querem saber: e DiCaprio? Bem, seguindo o histórico do Oscar de premiar grandes nomes por seus filmes menores, ele deve levar.

DiCaprio basicamente grunhe, geme e cospe durante o filme inteiro. Muito pouco para se dizer se sua performance é de fato boa. É como se ele pegasse a cena de “O lobo de Wall Street” em que fica chumbado de drogas no country club, arrastando-se pelo chão e grunhindo, e estende-se a interpretação por mais de duas horas. Por outro lado, Tom Hardy mostra-se muito mais consistente no papel de um homem ignóbil, mas cujas intenções conseguimos compreender -pois é uma figura dura forjada em um tempo e espaço igualmente duros.

O resumo do fracasso de “O regresso” é que o filme falha em conectar a dimensão natural com a dimensão humana. Curiosamente, o mesmo fracasso que fez sucumbir outro épico caído -e igualmente premiado-: “A árvore da vida”, de Terrence Malick. Assemelham-se até mesmo nos monólogos murmurados. Duas obras que se igualam enquanto experiências estéticas, mas que não convencem enquanto conteúdo cinematográfico.

 

 

 

 

PERDIDO EM MARTE, DE RIDLEY SCOTT

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Um dos mais aclamados diretores vivos, já faz algum tempo que Ridley Scott não consegue conciliar sua excelência formal com um conteúdo digno de nota. O último sopro de bom cinema foi com “O gângster”, em 2007. Cinco filmes esquecíveis depois, apostava-se que “Perdido em Marte”, baseado em livro de mesmo nome do autor Andy Weir, seria seu retorno à boa forma. Não é.

O filme conta a história do biólogo Mark Watney (Matt Damon), dado como morto por seus colegas de missão e deixado sozinho em Marte depois de uma tempestade que devastou a base em que eles estavam. Segue então a luta do astronauta tanto para fazer contato com a distante Terra quanto para sobreviver em um ambiente absolutamente hostil.

Convenhamos, Scott já parte de uma premissa muito batida -o herói abandonado que luta com todas as garras para sobreviver. O mínimo que se espera é que trouxesse algum novo viés. Mas isso não acontece. O filme se desenvolve com uma fórmula constante que pode ser resumida da seguinte maneira: problema – solução – problema. É muito pouco para sustentar mais de duas horas de exibição de algo que, no fim, parece mais um apanhadão de sketches científicos.

A situação fica ainda pior por causa de seu personagem principal. Não há conflito em Watney. Não há motivo, não há história -o mais perto disso é uma referência muito sutil aos pais do astronauta-, não há nada. E, ainda por cima, o biólogo encara tudo com uma leveza que só ressalta a sensação de que estamos diante de um programa do Discovery Channel.

Para não dizer que é tudo ruim, “Perdido em Marte”acerta no alvo ao mostrar como, mais do que um empreendimento de poucas cabeças privilegiadas, a ciência é uma aventura construída em colaboração por muitos. Além disso, para variar, Scott constrói uma obra que é no mínimo deslumbrante em termos visuais. Mas é muito pouco para quem já fez também desbundes como “Alien” e “Blade Runner”, que enchem tanto a cabeça quanto os olhos.

Apesar de tudo, o filme concorre ao Oscar em categorias como melhor filme e melhor ator, o que diz mais sobre a premiação do que sobre a obra. E permanece a questão: Ridely Scott voltará um dia à boa forma?

STAR WARS: O DESPERTAR DA FORÇA, DE J.J. ABRAMS

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É curioso o caso de J.J. Abrams. Considerado um dos mais inventivos criadores da televisão, sob sua batuta nasceram séries como “Alias” e “Lost”. No cinema, no entanto, mostra-se por vezes reverencial aos mestres do passado que pairam sobre ele. Foi assim com “Super 8”, que, produzido por Steven Spielberg, é uma espécie de divertido pastiche de vários filmes do diretor de “E.T.”. É assim com o novo “Star Wars”, uma franca releitura do primeiro filme da série criada por George Lucas. Se em ambos os casos o resultado é ótimo, fica a pergunta: o que virá depois para a Guerra nas Estrelas?

Mais do que se aventurar em uma das franquias mais rentáveis e amadas da história do cinema, Abrams também tinha de lidar com o fracasso retumbante de crítica -ainda que não de público- da segunda trilogia de “Star Wars”, que começou em 1999. O caminho escolhido foi o mais seguro: trabalhar com um espelho do primeiro filme da série. Mas aqui há algo mais, pitadas muito interessantes de humor, interpretações convincentes -um dos pontos mais baixos da segunda trilogia, encabeçada pelo horrível Hayden Christensen- e personagens que estimulam nossa empatia.

O novo filme se passa trinta anos depois do fim da primeira trilogia. O império foi derrotado, a República está viva, mas existe uma Primeira Ordem, comandada por um misterioso vilão. Das aventuras originais, restaram escombros de naves espalhadas por diversos lugares. E isso é uma das grandes sacadas do filme. Os restos do passado estão por todos os lados. O passado passou, mas não foi superado.

É nesse ambiente que Abrams apresenta sua primeira personagem, Rey (Daisy Ridley), uma jovem que vive sozinha num planeta igualmente desértico como aquele em que viveu Luke Skywalker, o Jedi da trilogia original que está sumido. Mas, ao contrário de Skywalker, criado pelos tios, Rey esta à espera de alguém que não sabemos quem é. É uma personagem que ao mesmo tempo exala uma força intensa e uma fragilidade tocante. E sempre que nos aproximamos dela por causa dessa fragilidade, ela nos mostra que não precisa de ninguém, que sempre se virou sozinha em um ambiente hostil.

O outro herói da série, Finn, também caminha entre a fragilidade e a força. É um soldado que deserda ao se defrontar com a brutalidade do lado ao qual serve. Não tem nome, nem sabe quem é. Ele, que sempre obedeceu, agora é livre para fazer o que quiser. E a união de Finn com Rey rende alguns momentos hilários, e outros, românticos. Mas quem são eles?

Trabalhar com atores desconhecidos sempre foi uma marca da franquia “Star Wars”. A opção, no entanto, é arriscada, pois muitas vezes os atores são…ruins. Mark Hamill (Luke Skywalker) e Carrie Fisher (Princesa Leia), por exemplo, nunca fizeram nada digno de nota depois de “Star Wars”. Hayden Christensen, para felicidade do cinema, sumiu. Apelar para os desconhecidos Daisy Ridley e John Boyega, no entanto, mostrou-se uma ótima opção. Desconhecidos, geram empatia no momento em que aparecem na tela. São convincentes, encantam os espectadores.

De certa forma, a escalação de Ridley e Boyega também ancora a nova trilogia num presente muito mais aberto a personagens femininas e afrodescendentes do que a época dos primeiros filmes. Basta lembrar que o único negro na primeira trilogia era o vilão -aqui, é um dos heróis. A escolha, por sinal, gerou os habituais chiados de cabeças de vento que não conseguem ver que os tempos mudaram.

Curiosamente, o mais bem sucedido ator da franquia, Harrison Ford, é também o que tem a aparição mais festejada na nova série. Quando Han Solo aparece na tela, Abrams faz a definitiva conexão entre o passado e o presente. É assim também quando o vilão Kylo Ren (Adam Driver, mais conhecido do que seus colegas de tela, mas menos convincente), filho de Solo e da Princesa Leia, aparece reverenciando o capacete destruído de Darth Vader, um dos vilões mais icônicos do cinema. O passado está sempre vivo.

Mas, assim como o destino do passado Han Solo, superado pelo vilão do presente, projeta um futuro desconhecido, também ficamos com a dúvida: poderá agora Abrams nos apresentar algo de fato original na nova trilogia depois de um primeiro e ótimo filme demasiado reverencial ao passado? Só resta esperar e apostar na inventividade já demonstrada pelo produtor, diretor e escritor.

O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS, DE LEONARDO PADURA

Existem pessoas que fazem a História. Existem pessoas que interferem na História. Existem pessoas que sofrem os efeitos da História. E existem aqueles que escrevem a história da História. Trotsky, Rámon Mercader, Iván. Todos ganhando cores vivas nas mãos do escritor cubano Leonardo Padura, que navega magistralmente por tempos e nomes para produzir em “O homem que amava os cachorros” mais do que um romance histórico -um balanço do caminho que o comunismo soviético trilhou da efervescência ideológica à ressaca autoritária.

O romance se desdobra entre as décadas de 1930, de 1970 e 1990. No primeiro tempo, acompanhamos um Trotsky exilado, sempre fugindo das ameaças de seu arquirrival Stálin, defendendo-se das acusações de traição enquanto tenta ao mesmo tempo questionar e justificar suas próprias ações durante seus tempos de herói revolucionário e chamar a atenção para o mergulho autoritário da experiência comunista.

É na década de 1930 também que vemos Rámon Mercader, combatente comunista republicano que combate as forças franquistas, ao mesmo tempo em que tenta fugir da e é ao mesmo tempo atraído pela força de sua mãe, de quem herdou o penhor revolucionário.

Rámon é o homem que será convocado para dar um fim a Trotsky, o espantalho ideológico que Stálin sacode para eliminar qualquer tipo de dissidência interna. Mas Rámon será muitos outros antes de chegar ao antigo e exilado revolucionário. E é da construção paralela de Rámon enquanto agente soviético e de Trotsky enquanto exilado cada vez mais isolado e peregrinando mundo afora que se faz essa década de 1930.

Já em 1970 temos Iván, uma promessa da literatura que foi esmagado pela máquina burocrática cubana, que conhece, numa praia, um estranho e doente homem que lhe conta uma história apagada para Cuba: a de que um dia houve um dissidente comunista, Trotsky, que foi assassinado a mando de Stálin. É apenas na década de 1990, já numa Cuba em estado de miséria sem a ajuda financeira da extinta União Soviética, que Iván irá conseguir ligar todos os pontos da história que ouviu décadas antes.

E temos Padura, o escritor cubano, que vive em Cuba e que consegue escrever, dentro do regime, um livro francamente crítico aos rumos que o regime cubano tomou -sua falta de transparência, o autoritarismo de sua burocracia, a pauperização que iguala a todos na miséria.

Por todo o lado, o livro transparece uma pesquisa histórica profunda por parte de Padura, que consegue dar vida a alguns dos grandes embates ideológicos que dominaram a esquerda durante o século XX. Paradoxalmente, o autor se sai melhor quando fala do tempo longe do que quando fala da época mais próxima. Ali, as descrições são vívidas, permeadas da realidade dos julgamentos forjados do regime comunista e das movimentações pré-Segunda Guerra Mundial. Em comparação, suas descrições das décadas de 1970 e 1990 são bem menos vibrantes.

Talvez uma explicação para isso esteja nos grandes ausentes do livro: Fidel, Che Guevara e todos aqueles que fizeram a um dia heroica Revolução Cubana que depois se deteriorou no mesmo autoritarismo da um dia heroica Revolução Russa. Se lá temos os nomes e as movimentações de xadrez de diversos personagens da história, aqui, há apenas uma espécie de fantasma autoritário, inominado, o que provavelmente é apenas uma concessão de um escritor capaz de produzir crítica ao regime de dentro do próprio regime.

Sim, porque apesar de tudo, o livro se encerra com uma crítica brutal e melancólico do ponto de chegada da revolução que um dia prometeu liberar as pessoas do julgo da opressão econômica. Curiosamente, no fim, é justamente o ramo da história distante que perde sua cor, num longo capítulo demasiado didático. Concomitantemente, o tempo próximo é que ganha as cores vivas de um lamento profundo por todo o potencial revolucionário desperdiçado em uma experiência que se tornou apenas autoritária.

“O homem que amava os cachorros” é, assim, um livro verdadeiramente impressionante ao combinar ficção com realidade, ideologia com crítica. E, se a forma não tem nada de revolucionaria, é uma obra eletrizante que nos faz esquecer seu peso físico ao nos mergulhar no peso da História.

 

AMSTERDAM, DE IAN McEWAN

O autor inglês Ian McEwan e o prêmio Booker Prize são duas das mais valorizadas marcas da literatura mundial, quase um selo de garantia de qualidade. “Amsterdam” carrega as duas marcas em sua capa. Como o livro, então, pode, apesar de alguns pontos altos, ser uma obra tão fraca, com um final tão ruim, quase constrangedor de tão óbvio?

O livro começa com um encontro entre o jornalista Vernon Halliday e o compositor Clive Linley. Longe de ser um momento alegre, os dois estão ali para o funeral do elo que um dia os uniu: a artista Molly Lane, da qual, em tempos diferentes, ambos foram amantes. Completam os homens que giram em torno da falecida seu então marido, o magnata George, e o ministro das relações exteriores do Reino Unido -e provável amante de Molly-, Julian Garmony.

Por sinal, o funeral é justamente um dos pontos altos do livro. Cheio de diálogos mordazes, observações agudas, banhados de um humor tipicamente inglês -pois só esse tipo de humor conseguiria aparecer em uma situação tão triste quanto um funeral, ainda mais o de uma mulher que, quando viva, foi uma força da natureza. O fato de Molly ter morrido vítima de uma doença degenerativa que corroeu sua memória apenas ressalta o horror do destino de uma pessoa que fora tão energética e cintilante. E, justiça seja feita, conseguimos sentir muito bem toda a força de Molly nos relatos que McEwan coloca na boca e nas lembranças de seus personagens.

Sob o efeito da morte de Molly, Vernon e Clive decidem fazer um pacto: caso algum deles desenvolva uma doença degenerativa, o outro deveria matá-lo para que o doente não decaísse como a mulher decaíra.   Mas não se engane, pois não há qualquer discussão ou problematização sobre a eutanásia no livro. Bem distante disso, “Amsterdam” se foca em discussões sobre a ética jornalística e sobre a produção artística desengajada do mundo que o cerca e capaz de existir ao lado dos piores horrores.

Justiça seja feita mais uma vez, McEwan consegue com brilhantismo descrever o fazer musical de Linley e o lugar de sua produção no contexto da música sinfônica moderna. O compositor é popular, mas não goza de grande apreciação crítica. Ainda assim, a ele foi encomendada uma sinfonia para o milênio, um concerto para celebrar a chegada do novo século e que, mais do que uma composição, também deveria ter um tema inescapável, capaz de marcar para sempre na cabeça das pessoas, algo como a 9ª sinfonia de Beethoven. Não é pouco, e o autor consegue nos colocar muito bem nos devaneios e dúvidas artísticas de Linley, que busca uma espécie de melodia definitiva.

Curiosamente, McEwan tem bem menos sucesso ao retratar o mundo do jornalismo vivido por Halliday, editor de um jornal cujas vendas minguam. Em dado momento, George, o viúvo e também acionista minoritário da publicação, entrega a Halliday algumas fotos comprometedoras que encontrou entre as coisas de Molly. São imagens de Garmony usando roupas femininas. É a chance de alavancar as vendas do jornal, mas sob o preço de o transformar em mais um tabloide sensacionalista.

Tem até algum valor os diálogos travados entre Halliday e Linley sobre se a publicação das fotos não seria uma traição à memória de Molly. Mas o pior é a maneira inocente com que McEwan leva seu personagem editor a conduzir o processo de publicação das imagens. Halliday, rato velho da imprensa, age como um verdadeiro iniciante, pois só assim o escritor conseguiria armar a parte da trama em que Halliday é passado para trás por um jornalista mais jovem e ambicioso. E é então que o livro começa a desmoronar.

Afora outra discussão interessante sobre como o fazer artístico pode por vezes estar completamente dissociados dos dramas da vida real, “Amsterdam” entra numa queda vertiginosa em sua segunda metade, toda ela construída para se chegar a um final previsível e -ainda pior- pretensamente cômico, mas que somente consegue ser anticlimático.

McEwan, que conseguiu até lidar com alguns temas interessantes ao longo do livro, falha terrivelmente ao tratar de seu último, e talvez mais polêmico, assunto -a eutanásia. Até por isso, no fim não temos uma obra sistematicamente coerente em sua construção, mas sim um apanhado de acontecimentos que servem para o autor discutir paulatinamente alguns assuntos que se sucedem de maneira artificial, e não com a sincronicidade com que as questões na verdade se apresentam na vida real, que é, afinal, aquela retratada numa obra de toada naturalista, como “Amsterdam”.

Livro ruim, não deve, no entanto, servir de desestímulo para quem quer conhecer McEwan, pois o autor tem, de fato, obras muito melhores, como “Na praia” e “Reparação”.

WHAT HAPPENED, MISS SIMONE, DE LIZ GARBUS

Nina Simone atingiu a aclamação de público e crítica com sua música que transitava pelo blues, jazz e R&B. Conquistou fama e fortuna. Apesar de tudo o que conseguiu, o peso do lamento sobre o que nunca foi -a primeira pianista clássica negra dos Estados Unidos- sempre esteve presente, ainda mais pela barreira que a impediu de realizar seu sonho: o racismo. É das consequências do paradoxo embebido no racismo de uma mulher que conquistou um sucesso que não buscava ao mesmo tempo em que não foi o que desejava que Liz Garbus tira toda a força de seu documentário “What happened, Miss Simone”.

Nina Simone emerge do filme como uma verdadeira força da natureza, em tudo o que isso tem de bom e de ruim. Ao mesmo tempo em que faz as estações do ano com seus dedos passeando pelo piano e com sua voz marcante, é também o vulcão sempre prestes a explodir, o que fez contra a própria filha, por sinal, em quem chegou a bater. Impressiona sabermos da violência contra a filha, pois Nina Simone foi ela mesma vítima da violência de seu marido e agente.

Daí a coragem do filme em abandonar qualquer resquício de uma abordagem meramente celebratória para adotar o caminho mais espinhoso de revelar sua personagem em todas as suas contradições, doçuras e violências. Por isso, surpreende ver que a filha de Nina é produtora-executiva do filme, e ainda assim não deixou de tratar todos os assuntos que precisavam ser tratados.

Assim, vemos a própria Nina Simone, logo no começo do filme, contando seu sonho de se tornar a primeira pianista negra dos Estados Unidos. Ela chegou a frequentar escolas muito prestigiadas de música, mas teve sua ascensão barrada pela recusa de uma bolsa de estudos. Ela conta que apenas depois percebeu que foi o racismo que lhe negou a continuação do caminho. Com todas as esperanças da família depositadas nela, só lhe restou começar a tocar piano e a cantar em pequenos clubes de Nova Iorque.

Logo começou a chamar a atenção pelo domínio técnico e pela voz única. Conheceu então o homem que se tornaria seu marido e agente, e que a colocou para gravar e se apresentar sem parar. Ela era uma estrela pop em franca ascensão, num momento em que várias outras estrelas negras começavam a ganhar espaços maiores no show business norte-americano. Mas também eram os anos 1960, época de fortalecimento do movimento pelos direitos civis dos negros, e que tinham em Martin Luther King e em Malcolm X suas faces respectivamente pacificadora e de enfrentamento. E Nina, assombrada pelo fantasma do racismo passado e presente, começou a flertar com a política.

Na medida em que se embrenhava mais no movimento pelos direitos civis, mais política também se tornava sua música -um desvio no caminho de musa pop que seu marido traçara. E ele logo começou a demonstrar sua frustração surrando a mulher, que, ainda assim, permanecia com ele. Ao mesmo tempo, Nina ia enveredando para as vertentes mais combativas do movimento, pregando o conflito aberto com os brancos -mesmo que um de seus amigos mais próximos fosse um guitarrista branco que estava com ela desde o princípio da carreira.

O filme consegue passar com perfeição a mudança pela qual Nina vai passando. Sorridente no princípio, vai se tornando cada vez mais carrancuda. O ápice é um show no qual ela para de tocar para passar um pito em uma pessoa da plateia.

Talvez a parte mais contestável é aquela que amarra toda a complexidade da personalidade de Nina Simone sob o diagnóstico de bipolaridade, ainda mais considerando uma sociedade tão apaixonada pela medicalização quanto a norte-americana. Não seria Nina Simone apenas a vítima daquele paradoxo inicial, que recorrentemente volta no documentário pela voz da própria Nina: ser quem era ao mesmo tempo em que lamentava não ter sido o que queria? Viver de música ao mesmo tempo em que lhe doía tanto tocá-la?

No fim, “What happened, Miss Simone” consegue atingir um objetivo que não sei dizer se existia em sua concepção. O filme simplesmente faz com que jamais alguém consiga ouvir novamente uma música de Nina Simone sem pensar na vida dela, no que o documentário mostrou, na complexidade de sua personalidade. E isso é um sinal inequívoco de sucesso.

DIÁRIO DA QUEDA, DE MICHEL LAUB

Auschwitz, Alzheimer -inesquecível, esquecimento. Entre essas fronteiras é que se desenvolve o intenso e delicado “Diário da queda”, do escritor gaúcho Michel Laub, um livro capaz de colocar as histórias mais íntimas contra o fundo da História, com “H”, que aparece com todo seu peso, mas sem funcionar como como um instrumento narrativo determinista que explique toda e qualquer ação dos personagens.

A tal queda ocorre numa festa, na qual o narrador e seus colegas de uma escola judaica arremessam um outro estudante -que não é judeu- para cima, mas não o pegam quando ele cai para se estatelar no chão. Esta, no entanto, é apenas uma das quedas, a real, que desencadeiam um fluxo narrativo em primeira pessoa, no formato, claro, de um diário escrito em blocos de textos numerados.

Há outras quedas, mas simbólicas. A do avô do narrador, que sobrevive a Auschwitz, vem para o Brasil no Brasil e passa o resto da vida negando-se a falar sobre a experiência no campo de concentração. Mas não falar não significa não lembrar, e ele se lembra, supõe o narrador, o tempo todo sobre a experiência traumática já tão tratada em outras obras artísticas, notadamente em “É isto um homem?”, no qual Primo Levi também conta sua experiência num campo de concentração.

O livro de Levi, por sinal, reaparece o tempo todo durante “Diário da queda”, quase como uma espécie de apoio usado para que o narrador não precise ficar relembrando o tempo todo a profundidade do trauma do Holocausto. Mas não é apenas o livro que serve de apoio -Primo Levi também surge como um espelho do avô do narrador, homens que sobrevivem a umas das experiências mais horrorosas da humanidade apenas para tirarem sua vida décadas depois.

Outra queda é também a do pai do narrador, que, cedo, passou pelo trauma do suicídio do pai. Mais velho, vive uma relação algo fria com o filho, na qual se destaca um momento em que este renega o judaísmo e o peso do Holocausto, provocando uma reação extremada no pai, que, mais velho, será diagnosticado com Alzheimer.

O próprio narrador, por sua vez, passa por uma queda, uma crise, uma encruzilhada. Ao mesmo tempo em que se depara com a doença do pai, reflete sobre a vida do avô, e se confronta com um presente no qual parece estar num beco sem saída, perdido.

Assim, “Diário da queda” é um belo livro sobre este narrador que vasculha as vidas dos homens que lhe precederam na família como uma tentativa de entender a própria vida e, de alguma maneira, dar sentido e continuidade a ela.

A escrita em blocos, por sua vez, mostra-se uma eficiente ferramenta para manter o leitor preso ao texto. Por não ter a mesma obrigação de coerência de parágrafos que se seguem num texto corrido, a surpresa aparece como uma das marcas inconfundíveis da estratégia narrativa de Laub. Um bloco de ação é seguido por um de reflexão. Um bloco sobre o pai é sucedido por um sobre o avô. E, dessa maneira, o leitor acaba focando a atenção em um bloco ao mesmo tempo em que anseia pelo próximo.

Talvez por isso o livro perca sua força justamente em seus momentos finais, nos quais a surpresa vai sendo  substituída pela certeza de saber o que virá a seguir -um fim que acabamos antecipando antes de a ele chegarmos, um fim que tem lá seu caráter redentor e que amarra a experiência do pai, do filho e do neto em um porvir que banha a carga dramática do passado num rio de esperança -a queda não se completa. Mas vale ser acompanhada.

NOSTALGIA DA LUZ, DE PATRICIO GUZMÁN

O deserto do Atacama, no Chile, é um portal para o passado, que alguns buscam olhando para cima, e outros, para baixo. Aqueles observam as luzes das estrelas com os mais potentes telescópios que existem, atrás de respostas para a origem da humanidade; estes usam pequenas pás para escavar a areia, atrás de restos dos corpos de seus parentes assassinados por uma desumana ditadura. É entre ambos que se desenvolve “Nostalgia da luz”, o lindo documentário do chileno Patrício Guzmán que consegue tratar ao mesmo tempo daquilo que temos de mais maravilhoso e de mais monstruoso.

Tudo é passado, diz um astrônomo, pois mesmo a luz dos objetos mais próximos chega com algum atraso a nossos olhos. Olhar para o espaço é, portanto, olhar para o passado, mas sempre buscando respostas para algumas das perguntas mais fundamentais da humanidade. E o deserto do Atacama é um local privilegiado para se olhar para cima. Seu clima seco -o mais seco do mundo- permite uma visibilidade quase perfeita do céu. Por isso, ali foram construídos os mais potentes telescópios que existem.

Mas não é apenas para um passado absurdamente remoto que o Atacama se abre. Seu clima seco também impede a decomposição de materiais orgânicos, e o deserto, rota de travessia de povos pré-colombianos, ainda guarda os vestígios desses antiquíssimos viajantes, bem como preservou mumificados os corpos daqueles que ali pereceram. Memória resguardada.

Porém, quanto mais próximo, mais o passado se turva no deserto. No século XIX, ali se instalou a rica indústria do salitre, que empregava -e massacrava- seus trabalhadores, uma história que os chilenos preferem não lembrar. No mesmo lugar que servia de alojamento a esses trabalhadores -quase escravos- do passado, bastou à ditadura de Augusto Pinochet passar arame farpado para criar um campo de concentração aos pés da montanha onde está um telescópio. Este, um passado que os chilenos preferem enterrar literalmente -no deserto, foram enterrados os corpos de dissidentes políticos mortos e, depois, foram removidos e levados para um lugar desconhecido. Mas restaram fragmentos, ossos, que seus familiares hoje procuram, escavando o imenso deserto com pequenas pás.

Para contar a história sobre todos esses passados que se revelam e se escondem, Guzmán conta apenas com um punhado de muito bem selecionados personagens, imagens de tirar o fôlego e uma narrativa que se sobressai pelo tom sóbrio e, principalmente, pela força de suas palavras.

Ainda que olhem para o céu, os astrônomos não estão alheios ao que se passa no chão. Assim, um dos personagens, lá para o meio do filme, trata de afastar a fácil aproximação entre quem mira as estrelas e quem mira o chão. Para aqueles, diz o cientista, um dia sem descobrir algo sobre o passado não tem peso nenhum, ao contrário do que acontece com as mulheres -e são todas mulheres as pessoas que escavam há anos o deserto- que buscam os rastros de seus familiares.

Da mesma maneira, também é diferente como cada mulher vive sua busca. Uma delas, por exemplo, consegue encontrar parte do crânio e um pé ainda calçado de seu irmão. É comovente ouvi-la falar como passou toda uma manhã com as mãos naquele pé calçado, decepado, único vestígio de um ente que se foi, e como esse processo foi uma espécie de reencontro com o irmão. Já outra das mulheres não se contenta com os poucos restos que encontrou de seu marido. Para ela, não importam pedaços: ela o quer inteiro, como o levaram. A dor é diferente para cada uma delas.

Ainda que passada, a violência da ditadura continua a ter seus efeitos no presente, como bem mostram a história de dois jovens astrônomos. Ele, filho de pais exilados, cresceu em outro país e sente-se num limbo, nem chileno, nem estrangeiro, apesar de trabalhar pela ciência chilena. Ela, filha de pais desaparecidos e criada pelos avós, parece reconciliada com a memória de seus pais e consciente do peso da história sobre sua vida.

Céu e deserto, por sua vez, tornam muito fácil criar imagens de grande beleza. Guzmán, no entanto, não se contenta em ser um fotógrafo da beleza fácil -ele efetivamente conta uma história com o que filma. Nada é gratuito e somente belo. É, sim, lindo observar um punhado de mulheres escavando a terra contra a luz do sol. Mais do que bela, no entanto, a imagem é profundamente triste pela imensidão que revela comparada com a pequenez e fragilidade que é a vida humana. Há filosofia aqui, o que nos leva à narrativa.

O maior risco em uma obra com a ambição de “Nostalgia da luz” é escorregar na pretensão e cair na filosofia barata, rasa ou propagandística. Há um narrador em off, e sua maneira de falar é pausada, monocórdica, quase burocrática. Se o efeito pode resultar sonolento, aqui, pelo contrário, só faz ressaltar a beleza poética das palavras faladas. Ao despir a voz de emoções, Guzmán deixa que apenas o texto fale, e isso só pode ser feito com um material de extrema qualidade, que, sem dúvida nenhuma, esbarra em momentos de grande literatura, como na parte final do documentário.

A grande e paradoxal força de “Nostalgia da luz”, no fim, é que o filme se constrói em cima de uma contenção extrema das emoções em suas diferentes formas de expressão, que, no entanto, quando reunidas, transformam-se em algo muito maior do que um mero documentário: é uma experiência emocional.